Opinião

A reforma tributária e o imposto seletivo sobre o petróleo

É inconstitucional a interpretação que viabiliza a incidência do imposto seletivo sobre a extração do petróleo com destino à exportação, por ofensa aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade

Por Márcio Ávila

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A Emenda Constitucional nº 132/2023, fruto da reforma tributária, prevê que compete à União instituir imposto sobre a produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos da lei complementar (CF/88, art. 153, inc. VIII). A finalidade desse tributo é desestimular atividades nocivas à saúde e ao meio ambiente (“imposto do pecado” ou Sin Tax). É um imposto evidentemente extrafiscal.

Na parte que interessa ao presente artigo, o imposto seletivo (IS) incidirá uma única vez, não integrará sua própria base de cálculo, não incidirá sobre as exportações e suas alíquotas poderão ser específicas, por unidade de medida adotada, ou ad valorem (CF/88, art. 153, § 6º, incisos I, II, III e VI).

Infelizmente, alguns hábitos ruins permanecem, de maneira que o imposto seletivo integrará a base de cálculo do ICMS, do ISS, do IBS e da CBS (CF/88, art. 153, § 6º, inc. IV) e poderá ter o mesmo fato gerador e base de cálculo de outros tributos (CF/88, art. 153, § 6º, inc. V). Vale lembrar que parte da arrecadação da CIDE Combustíveis é destinada, há mais de vinte anos, ao financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleo e do gás (Lei nº 10.336/2001, art. 1º, § 1º, inc. II) e que poderá haver coincidência de fatos geradores, tendo em vista que a referida contribuição tem como fato gerador as operações de importação e de comercialização no mercado interno dos combustíveis previstos nos incisos do art. 3º da lei (gasolinas e suas correntes; II - diesel e suas correntes; III – querosene de aviação e outros querosenes; IV - óleos combustíveis (fuel-oil); V - gás liqüefeito de petróleo, inclusive o derivado de gás natural e de nafta; e VI - álcool etílico combustível).

Sob o ponto de vista da repartição de receitas, do produto da arrecadação do imposto seletivo, a União entregará 50% (cinquenta por cento), da seguinte forma:  a) vinte e um inteiros e cinco décimos por cento ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal; b) vinte e dois inteiros e cinco décimos por cento ao Fundo de Participação dos Municípios; c) três por cento, para aplicação em programas de financiamento ao setor produtivo das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, através de suas instituições financeiras de caráter regional, de acordo com os planos regionais de desenvolvimento, ficando assegurada ao semi-árido do Nordeste a metade dos recursos destinados à Região, na forma que a lei estabelecer; d) um por cento ao Fundo de Participação dos Municípios, que será entregue no primeiro decêndio do mês de dezembro de cada ano; e) 1% (um por cento) ao Fundo de Participação dos Municípios, que será entregue no primeiro decêndio do mês de julho de cada ano; f) 1% (um por cento) ao Fundo de Participação dos Municípios, que será entregue no primeiro decêndio do mês de setembro de cada ano.

Adicionalmente, 10% (dez por cento) do produto da arrecadação do imposto seletivo ainda será destinado aos Estados e ao Distrito Federal, proporcionalmente ao valor das respectivas exportações de produtos industrializados. E os Estados entregarão aos respectivos Municípios 25% (vinte e cinco por cento) dos recursos que receberem.

Quanto à incidência única sobre a produção ou a extração, é importante que a lei complementar defina tais conceitos para fins tributários ou que respeite o conceito já previsto no art. 6º, inc. XVI da Lei do Petróleo (Lei nº 9.478/1997), segundo o qual a lavra ou produção consiste no “conjunto de operações coordenadas de extração de petróleo ou gás natural de uma jazida e de preparo para sua movimentação”. Nessa segunda hipótese, a extração já faz parte do conceito de produção, de maneira que bastava a referência no texto constitucional à incidência sobre a produção. Porém, como o petróleo não é a única hipótese de incidência do imposto seletivo sobre bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, a lei complementar deverá esclarecer tal ponto para evitar a judicialização da matéria, pelo menos no que se refere à extração do petróleo.

Aliás, se o legislador complementar vier a estabelecer que o imposto seletivo incidirá uma única vez sobre a produção, extração, comercialização ou importação, não importando a cadeia econômica, haverá plurifasia e será inevitável a previsão de uma regra de não cumulatividade. A importação para posterior revenda (comercialização) é um exemplo básico da plurifasia e não faz sentido a incidência do IS na importação e outra incidência na comercialização.

De acordo com o Parecer nº 88 da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, o imposto seletivo terá natureza extrafiscal e não será utilizado com a função primária arrecadatória, mas terá suas alíquotas determinadas pelo Congresso Nacional para reduzir o consumo de determinados bens e o exercício de atividades prejudiciais ao meio ambiente. Acrescenta o parecer: “Na medida em que as alíquotas deverão ser mais elevadas – o que é suficiente para o alcance dos objetivos de sua instituição –, não há necessidade de incidência plurifásica, por isso incluímos a restrição de monofasia para o Imposto Seletivo”. Nesse sentido, não se espera a incidência plurifásica do imposto seletivo, o que seria, inclusive, contrário ao objetivo de simplificação da legislação.

Na hipótese de extração de petróleo, o imposto será cobrado independentemente da destinação, caso em que a alíquota máxima corresponderá a 1% (um por cento) do valor de mercado do produto (CF/88, art. 153, § 6º, inc. VII). A princípio, a introdução desse tributo no sistema constitucional tributário está alinhada com a transição do modelo energético e com a pauta da COP 28, ao prever a redução gradual do uso de combustíveis fósseis, muito embora se saiba que ainda não há alternativas viáveis em escala suficiente para substituí-los. Se na extrafiscalidade existe um juízo de valor que busca inibir ou incentivar comportamentos, fica sem resposta a seguinte pergunta: como desestimular a extração de petróleo se não existe alternativa viável em escala suficiente para substituí-lo? Muito além de uma questão tributária, esse é um problema de política energética que o Brasil precisa resolver primeiro.

É importante lembrar que, apenas no Estado do Rio de Janeiro, já se tentou por duas vezes (Lei Noel, Lei nº 4.117/03; Nova Lei Noel, Lei nº 7.183/2015), fazer incidir o ICMS sobre a extração do petróleo, o que foi rechaçado pelo STF (Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5481). Agora, a União avoca essa tarefa, embora divida o bolo com Estados e Municípios, através de um tributo extrafiscal com base de incidência ampla e uma justificativa ambiental plausível.

Quando o texto constitucional estabelece que o imposto será cobrado independentemente da destinação, não se quer dizer que haverá incidência sobre as exportações de petróleo. Não se concorda, no presente artigo, com a interpretação do Parecer nº 88 da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal de que para restringir atividades poluentes e degradantes ao meio ambiente é que foi proposta “a extensão da incidência do imposto para atividades de extração, caso em que não interessará o destino do produto extraído (mercado interno ou estrangeiro)”.

A leitura constitucional adequada não é aquela segundo a qual é indiferente, para fins de incidência do imposto seletivo na extração do petróleo, a sua destinação ao mercado interno ou externo, mas a que defende ser indiferente a destinação, no mercado interno, do petróleo extraído, seja para uso, consumo, comercialização ou industrialização. Enquanto no ICMS a destinação da mercadoria importa para fins de determinação do Estado competente para a exação tributária, no imposto seletivo, que é de competência da União, essa distinção passa a ser indiferente.

Nesse sentido, é inconstitucional a interpretação que viabiliza a incidência do imposto seletivo sobre a extração do petróleo com destino à exportação, por ofensa aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Não se exporta tributo! Isso ofenderia o princípio do país de destino e estaria na contramão de quase todos os Estados soberanos do globo, que não tributam a saída do produto do território nacional, mas a sua importação. Essa é a prática internacional à qual a reforma tributária tanto buscou se alinhar.

Por fim, é defensável que o imposto seletivo na extração do petróleo não incida sobre o gás associado que, no reservatório, está dissolvido no óleo ou sob a forma de capa de gás. Essa é uma questão de política tributária, mas o gás natural produz menos dióxido de carbono (CO2) que o carvão ou o petróleo. Embora seja considerado um recurso não renovável, o gás natural é mais limpo e eficiente do que outras fontes de energia. Ademais, a reinjeção do gás natural no poço evita a sua queima e é requisito técnico para otimizar a produção de petróleo.

 

Marcio Ávila, pós-doutor em direito tributário, doutor e mestre em direito internacional (UERJ), é professor de prática tributária na FADUFF e sócio do escritório Márcio Ávila advocacia e consultoria.

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